Monday, October 24, 2005

Engenheiro no curso de Geologia


(Esta é uma obra de ficção; qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência - embora alguns fatos possam ter servido de inspiração.)

Colega... eu fui fazer um curso de Geologia... mas não era dessa Geologia que os geólogos da gente ficam falando todo dia, não! Era um curso de Estratigrafia de Seqüências! Sabe lá o que é isso?

Eu pensei: agora vou me dar bem! umas bem merecidas férias! Eu via as fotografias que os geólogos mostram dos cursos que eles fazem, com aquelas paisagens maravilhosas, aquelas cachoeiras, aquelas histórias de tomar cerveja, eu fui achando que ia ser uma maravilha!

...quase chorou pondo a mão e dizendo que era uma maré de um bilhão de anos!
Um geólogo quase chorou...
Chegamos ao aeroporto. Agora, imagine! Eu ia pra um lugar de turismo ecológico, com tudo pago pela empresa, num hotel 5 estrelas... Ah, eu fui certo que ia passar uma semana de rei!

Daí que fomos pro avião. Era um Brasília tosco, colorido, meio afrescalhado, pintado de cor-de-rosa – cor-de-rosa não! Pink! – daí eu estranhei. Pensei: Êpa! Onde é que estou entrando?

A viagem até que foi razoável, mas a aeromoça parecia estar com raiva: pensei que ela ia jogar o pacotinho de amendoim na minha cara. Na hora de aterrisar, eu olhava, olhava, e nada de ver aeroporto internacional nenhum: só mato seco. Uma caatinga brava! Os geólogos que iam dar o curso, animados, falavam sem parar.

Pegamos uma van. O tal hotel cinco estrelas ficava no alto de uma ladeira, no meio de um monte de casinhas muito pitorescas, mas sem grandes atrativos. Vi a piscina, pensei: hoje, estamos descansados. O cardápio do restaurante até que era bom. Mas os professores avisaram: aula às cinco, e depois a gente vai comer na praça!

Agora, você imagina! Depois de encarar duas horas de Boeing e uma hora de Brasília, aula à noite!

A tal aula começou: os geólogos começaram falando de Epistemologia, de Filosofia. Falaram de construção do conhecimento e coisa e tal. E depois, foi um tal de "não sei o que lá, não sei o que lá, não sei o que lá..." e falavam de arenito, de mar, de rio, de deserto e eu não estava entendendo muito bem, porque falavam de bacia sedimentar e eu só via morro e serra pra todo lado! Já tinha ouvido falar que ali tinha sido mar, mas sempre achei que era poesia de geólogo.

No dia seguinte, sete horas da manhã estávamos todos tomando café. O salão estava cheio de passarinhos pulando nas mesas pra catar mamão e farelo de pão! Daí, a gente saiu de van. Pensei que íamos fazer alguma coisa interessante. Não é que a van parou no meio da estrada, na frente de um corte-de-estrada, um barranco todo de pedra, e mandaram todo mundo descer? Pensei:

-“Ué, descer aqui? Por quê?”

Os geólogos estavam numa animação absurda! Pareciam pivete quando vê turista na praia! E falavam, apontavam, era um tal de "não sei o que lá, não sei o que lá, não sei o que lá, arenito, não sei o que lá, ambiente estuarino, foz-de-rio, mar, maré, tidle bundle"! Veja só! Nós no meio da estrada, um calor de matar, correndo risco de vida, com caminhões passando do nosso lado, e a gente com uma prancheta, umas folhas de papel, uma trena dessas dobráveis, de dois metros, tendo que medir barranco. E mostravam que as pedras mudavam de cor, de marrom claro passavam para tudo listradinho... e diziam que umas marcas nas pedras eram resultado de marés, outras, de ondas. Teve um geólogo que quase chorou, quando pôs a mão no barranco e falou:

-“Gente, isto foi depositado por uma maré há um bilhão e duzentos milhões de anos!”

no segundo dia, mais barranco!
Na beira da estrada, "não-sei-que-lá, eólico"
Um colega engenheiro perguntou de onde ele tirou essa idade e ele – juro que enxugou as lágrimas com as costas da mão – começou a falar: “não sei o que lá, não sei o que lá, não sei o que lá, Geocronologia, não sei o que lá, datação”. Sorte que não tinha mosquito. Mas gastei bem um vidro de filtro solar, que eles tinham dito pra levar. E eu que pensei que era para a piscina?

Depois do almoço – que a gente fez num restaurante a quilo num posto de gasolina, com uma comida maravilhosa, será que era a fome? - A gente ainda voltou pro pé do afloramento. É... geólogo chama barranco de afloramento! E pegamos uma fotografia do barranco, toda plastificada, e tome a contar história: “não sei o que lá, não sei o que lá, não sei o que lá, e o mar subiu, não sei o que lá, o mar desceu...”

Saindo de lá, eles prometeram um brinde. Tinham dito para levarmos sunga. Andamos uns dez minutos no meio do mato, eles mostraram mais barrancos, agora na beira de um rio. E quando a gente chegou lá embaixo, descendo o rio, já escurecendo, cheio de mosquito, um botequinho pé-sujo... eles falaram pra tomar banho de cachoeira! Um buraco, uma água preta que nem coca-cola... Santa cachoeira, santa cervejinha! Jamais pensei que fosse gostar tanto de uma lata de cerveja! E um monte de sagüi em volta da gente, pedindo comida!

De noite, tome aula! Mais "não-sei-que-lá, não-sei-que-lá, não-sei-que-lá, maré, estuário, dunas, areia, ambiente eólico..." Só depois das nove a gente foi sair pra jantar! O restaurante era muito bom, comida fina, mas eu lá tinha paladar para aproveitar alguma coisa?

No segundo dia... Mais barranco!

Dessa vez, falavam em dunas. Eu olhava, via pedra. E eles? “Não sei o que lá, não sei o que lá, não sei o que lá, duna, não sei o que lá, queda de grãos, não sei o que lá, areia fina, areia grossa...” Eu, que até já começava a enxergar tudo aquilo, fui me empolgando.

O almoço foi um saquinho de plástico com dois sanduíches murchos, um ovo cozido e um pedaço de cocada, com uma banana e um maçã. Os geólogos pareciam estar no céu. Paramos em frente a um botequinho de cidadezinha, cheio de fotos amarelas na parede! Ainda assim, comemos na rua! Em duas mesinhas de cimento, no meio da rua! Pode?!

De tarde? Acertou! Voltamos pros barrancos – desculpe, afloramentos – e mais fotografia plastificada. E agora, vieram mostrar as tais falhas. Olha que eu vi! Eles disseram que era do tectonismo regional, que eram veios de quartzo. Um ali até achou uns cristaizinhos espalhados pelo chão. Começava a gostar de tanta pedra na minha frente. Eles, então, pareciam estar no céu.

De noite? Claro! Aula e, só depois, comida! Não sei onde eles arrumaram energia para sair e comer! Meu corpo pedia: “Cama!”

O terceiro dia, confesso que sonhei em ter uma febre. Mal pensava em sair da cama. O telefone tocou, tomamos café e – barranco? – que nada! Subimos o Morro do Pai Inácio! Já viu foto dele? Duzentos e vinte metros, do chão ao topo. Eles dividiram a gente em três grupos, um ficou com o primeiro terço, outro com o segundo terço e nós ficamos na parte de cima. E mais “não sei o que lá, não sei o que lá, não sei o que lá, seqüência, não sei o que lá, segunda ordem, não sei o que lá, eólico, estuarino...” Sabe que eu já estava começando a entender aquilo tudo? Arrisquei uns palpites! Cheguei a ver as tais estratificações cruzadas! Sabe aquela história de ripple marks? Pois é! Eles mostraram tudo isso! Mas subimos e descemos aquele morrão umas três vezes, descrevendo, discutindo, conversando... Até me animei, dei uns pitacos na história toda!

De noite, não teve aula. A gente tomou banho e saiu para comer comida regional. Com a fome que eu estava, tudo era maravilhoso. Mas sabe que até sem fome eu teria comido bem? E tinha uma cachacinha... Acho que vou levar a família pra lá nas próximas férias. Diz que quando o curso é só para geólogos, eles ainda vão mais dois dias, subindo e descendo serra!

Sabe duma coisa? Nunca mais os critico por fazer esses cursos doidos. Confesso que fiquei com vontade de fazer outro: já até estou entendendo um pouco dessa história de trato de mar alto, trato de mar baixo, falha, estratificação cruzada... É... geólogo tem que ter muita imaginação!

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